Jussara Lucena, escritora

Textos

A fada da madrugada

A última quarta foi bastante interessante. Eu caminhava pela calçada da Siqueira Campos em direção a estação do Metro, atrasada para o trabalho. O celular vibrou em meu bolso e decidi atendê-lo. Era minha mãe recomendando que eu levasse algum agasalho. A moça do tempo havia dito na noite anterior que faria um frio atípico no Rio de Janeiro. Como se eu não estivesse acostumada com as baixas temperaturas do Sul! Repetiu a recomendação algumas vez. Acabei me distraindo e, automaticamente, atravessei a rua quando o sinal abriu.
Fui surpreendida por um forte puxão em meu braço. Num primeiro momento pensei num assalto e já estava pronta para arremessar a bolsa contra o trombadinha, quando senti o vácuo deixado pelo carro que furou o sinal vermelho. Fui salva por um desconhecido que percebeu a minha distração e a presença do veículo. O celular não teve a mesma sorte e despedaçou-se sob a roda do carro. O motorista infrator ainda teve a coragem de abrir o vidro e gritar alguns palavrões.
– Você está bem? – perguntou meu salvador.
– Sim, estou – respondi depois de alguns segundos ainda desorientada.
– Acho que seu celular estragou um pouquinho. – Ele comentou apanhando os restos do aparelho sobre o asfalto.
– Minha mãe, eu estava falando com ela! Deve estar preocupada.
– Vamos sair daqui. Para onde está indo?
– Para a estação do Metrô.
– Também vou para lá. Vamos, empresto o meu aparelho e você termina de falar com ela. – Sugeriu o desconhecido separando dos pedaços do aparelho o chip que resistira ao desastre e jogando os restos numa lata de lixo.
– Será que ainda conseguirei aproveitar o meu número? – perguntei.
Ele sorriu. Eu ficara mais preocupada com o celular do que com a minha vida.
Já na estação ele me emprestou o telefone. Liguei para minha mãe e expliquei o que acontecera. Minha mãe estava aflita. Com muita dificuldade consegui desligar o telefone em tempo de pegar o trem.
Conversamos por alguns instantes. Me despedi na Cinelândia. A estação dele era mais adiante. Já no escritório lembrei que nem ao menos eu havia agradecido ao homem. Eu não conseguia lembrar muito bem do rosto dele. Procurei pelo chip do meu celular. Revirei a bolsa e não encontrei. “Adeus número” – pensei.
O trabalho exigiu um pouco mais de concentração e por algumas horas esqueci o incidente. Estava próxima a hora do almoço e lembrei da ligação que fiz para minha mãe. Ela tinha no seu aparelho o número do desconhecido. Liguei e anotei. Minha mãe queria explicações e eu disse que mais tarde, quando a encontrasse, contaria tudo.
Fiz uma refeição rápida e liguei:
– Alô!
– Alô! Quem fala?
– Com quem quer falar?
– Me desculpe por ligar. Acredito que tenha sido o senhor quem evitou que eu fosse atropelada hoje pela manhã.
– Ah! Sim. E você é a moça que perdeu o celular.
– Gostaria de me desculpar. Quando estava no trabalho me dei conta de que eu nem havia agradecido.
– Não há o que agradecer. Tenho certeza que faria o mesmo por mim, ou por qualquer pessoa naquela situação.
– Meu nome é Desirée.
– Prazer em conhecê-la Desirée! Meu nome é Oswaldo. Ah! Percebi que ao deixar o vagão do trem você deixou cair o chip do seu celular. Ele está comigo.
– Já o havia dado como perdido!
– Como faço para devolvê-lo?
– Você mora em Copacabana?
– Sim, na Toneleros, no Residencial Oceano.
– Que coincidência! É o meu prédio. Não lembro de tê-lo visto antes.
– Mudei na semana passada. – me disse ele.
– Então... hoje à noite alguns amigos passarão lá em casa para um jantar. Alguns também moram no prédio. Que tal passar por lá?
– Conhecer os vizinhos é sempre bom!
– Apareça por volta das dezenove horas. O apartamento é o 502.
Me lembro de cada um dos detalhes daquela noite. Depois que todos foram embora, saímos para caminhar no calçadão de Copacabana. Fomos até o Leme, voltamos até o Forte.
– Eu adoro a noite, as madrugadas, muito embora as minhas últimas tenham sido um pouco tristes – disse Oswaldo.
– O que as fez tristes?
Então ele me contou um pouco de sua história no caminho para casa.
***
Por muitos anos certa pessoa fez parte da minha, das minhas noites e madrugadas. Por isso, entendo bem a solidão. A solidão nos bares que a agente frequenta, a falta que nos faz a pessoa amada, a falta que nos faz a nossa própria luz a nos orientar.
Me lembro da primeira vez que a vi. Ela valsando, só na madrugada, se julgando amada ao som dos bandolins. Me aproximei da mesma forma como, sem licença, o sol rompe a barra da noite sem pedir perdão. Cheguei sem o compromisso estreito de falar perfeito, coerente ou não e lhe disse:
– Me disseram que sonhar era ingênuo e daí? Fiquei observando você e percebi que aquela estrela surgiu no céu de néon para enfeitar a dança do teu cabelo. O vento me fez sonhar, olhando para a lua do teu sorriso. Também o vento e a madrugada iluminaram você, fada do meu botequim.
Num primeiro momento ela me ignorou, continuou dançando. Depois, parou, respirou fundo e me disse:
– Eu tenho medo de ver as criaturas da noite. Estátuas sem rosto me olhando, eu já vi as criaturas da noite. Por isso, na escuridão da noite, danço.
Quando olhei no negro dos olhos dela, não resisti, e como o sol alucinado penetra a nuvem, que brilha, beijei-a. Ela não reagiu. Restou apenas a ausência de som que emanava das estrelas. Ela manteve-se próxima, encostou a cabeça no meu peito e disse:
– Eu hoje acordei tão só, mais só do que eu merecia.
– Na tua sombra, na sombra da lua, que a rua tirou pra dançar, eu faço uma promessa: o meu amor será pra sempre!
– Também quero alguém pra sempre, mas sempre não é todo dia – respondeu-me ela.
Passamos muitas madrugadas juntos e foram as noites mais divertidas e encantadoras da minha vida, até que numa delas, ela chegou atrasada ao bar. Me deu um beijo e me disse adeus. Perguntei se ela não me amava mais, ao que ela me respondeu:
– Não querido, você não perdeu o seu brilho, eu que perdi como enxerga-lo.
Olhando em seus olhos, percebi que não havia como mudar a situação. Então ela me fez um pedido:
– Quando eu não estiver por perto, canta aquela música que a gente ria, é tudo que eu cantaria e quando eu for embora você cantará.
– Onde vá, onde quer que vá, vá para ser estrela.
– Sei, o nosso amor tem brilho, vou ver o teu sinal. Espero que a minha loucura seja perdoada, pois metade de mim é amor e a outra metade também – disse ela.
Sem entender os motivos que ela tinha para abrir mão de um sentimento tão intenso, toquei o cabelo dela e disse:
– Aqui no coração, eu sei que vou morrer um pouco a cada dia e sem que se perceba, a gente se encontra pra uma outra folia. Fico aqui e espero que a música que ouço ao longe seja linda, ainda que tristeza.
– Preciso ir.
– Espera, deixa eu ver se me recordo de uma frase de efeito, pra dizer te vendo ir, fechando a porta...
Despejei:
– Deixa ali teu endereço qualquer coisa aviso. Deixa o que fingiu levar, mas deixou de surpresa. Deixa em cima desta mesa a foto que eu gostava, para pensar que o teu sorriso envelheceu comigo. Deixa, e quando não voltar, eu finjo que não importa. Deixa eu chorar como nunca fui capaz contigo. Deixa eu enfrentar a insônia como gente grande. Deixa ao menos uma vez eu fingir que consigo. Deixa o que era inexistente e eu pensei que havia.
Sem olhar para trás, ela partiu.
Descobri que eu amava como amava um sonhador, sem saber por quê e amava ter no coração a certeza ventilada de poesia de que o dia não amanhece não. Sofri nos primeiros dias, mas depois disso, procurei levar a minha vida como a gaivota, com o compromisso de voar leve, à toa. Até hoje, ainda sou feito um menino que não dorme a planejar travessuras e fez do som da risada dela um hino. Ainda espero o seu retorno.
***
Eu permaneci, o tempo todo, olhando fixamente nos olhos de Oswaldo. Compreendia como todo o sentimento dele era verdadeiro. Invejei a fada da madrugada, me imaginei com os cabelos soltos ao vento, dançando, não no negro véu da noite, mas em pensamento me vesti de cigana para cantar o sol, que em breve nasceria.
De repente, me vi sozinha na escuridão. Doze bruxas dançavam ao meu redor. Cada uma delas representava uma hora, um mês, um signo, uma casa do zodíaco. A mais velha e mais feia me perguntava:
– Onde é o reino dos mortos Desirée?
O telefone tocou. Era minha colega de trabalho. Eu estava atrasada, não ouvi o despertador tocar. Pulei da cama e corri para o banheiro. Enquanto lavava o rosto eu lembrava do meu sonho e do show do Oswaldo Montenegro que eu assistira antes de ir para cama naquela noite.
Engoli algo. Saí correndo em direção a estação do Metrô. O celular vibrou em meu bolso e decidi atendê-lo. Era minha mãe recomendando que eu levasse algum agasalho...


Este texto faz parte da Antologia A música da minha vida da Editora Illuminare.

Adnelson Campos
02/04/2019

 

 

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